UM BUMERANGUE AO COSMOS
Sabe…
Comecei a escrever essas cartas para me preparar para o dia da sua partida, porque pra mim isso era algo muito presente. Eu chegava perto de ti e sentia cheiro de crisântemos, mas esse cheiro evaporou e sua vida passou a ter outros ares. Toda vez que chegava a data do seu aniversário, sua prosa era sobre a certeza de não chegar aos 65 anos. Só que esse é o momento. Daqui a pouco essa idade chega, contrariando sua certeza.
Da última vez que nos encontramos, percebi que sua expectativa havia mudado. A gente tava descendo a rampa da fisioterapia, pela primeira vez sem a cadeira de rodas, e eu te perguntei se a lembrança de estar mal, me chamando por outro nome e resistindo em ir ao médico era presente. Sua resposta foi de que não se lembrava disso. Pois é, tudo melhorou, eu disse. Acho que dá pra chegar nuns 70 anos, acho que dá, foi o que ouvi dessa vez.
Quanta diferença. Ganhou uma projeção de cinco anos a mais de vida. Parece pouco, mas nessa condição é um presente, ainda mais com as muitas cicatrizes que todo nego-véio carrega na vida. Verbalizar é o primeiro passo. Numa tentativa bumerangue de arremessar pro cosmos e receber de volta. Uma palavra dita mil vezes há de se tornar verdade, dizem.
Até suas lágrimas, que fazia tempo que não eu via, muito por conta do antidepressivo, voltou nesse encontro. Mesmo com a voz embargada e enrolada pelas sequelas do AVC, entendi que sua palavra dizia sobre a morte recente do patriarca do mercado de açúcar, o Abílio.
Eu comentei, tentando brincar, que ele viveu bastante, por ter morrido na faixa dos 90. Depois, fiz um comentário de mau gosto dizendo que deu tempo até de ele enterrar um filho. Sinal de longevidade, eu disse, com um sorriso amarelo. Sua resposta foi um “é viveu bastante, né?”, com a íris já transbordando.
Fiquei pensando se essa emoção era pela tristeza com a morte do ricaço, que imaginei ser um efeito de alguma matéria sentimental da TV, ou se era pelo encontro real com a finitude ou até mesmo por se deparar com a possibilidade de viver até os 90.
O mais importante foi ver sua emoção. Isso me deixou feliz, porque não era um choro de baixa autoestima, de sentimento de incapacidade ou da tristeza contínua que seu corpo exalava recentemente. Mesmo que motivado pela morte de alguém, seu choro foi um sinal de vida.
Na literatura dizem que a boa narrativa é aquela que mata o personagem no final, mas nesse caso faço algo parecido com que escreveu Édouard Louis, sigo na contra-literatura. Ele escreveu: “Disseram-me que a literatura nunca deveria ser uma exibição de sentimentos, e escrevo só para trazer à tona sentimentos que o corpo não sabe expressar”.
Por isso, peço licença poética para alterar e reafirmar o ensinamento de Louis “Porque, sei agora, construíram o que chamam de literatura contra vidas e corpos como o seu. Porque, sei agora, que escrever sobre ti, e escrever sobre a sua vida, é escrever contra a literatura”.
Então, se escrever e celebrar sua vitalidade custar até mesmo o meu fazer literário, que seja. O que te desejo é: desfrute sua existência, o máximo que puder.
Um abraço,
Nos vemos em vida.
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