MANTRA MANDINGA
Semanas atrás, saí da aula depois de uma discussão teórica bem da hora. Fiquei um tempo ecoando na mente discussões sobre individuação, produção de sentido, prova de vida, até que a rua chamou pro improviso. Hora de exercitar aquilo que não se aprende na universidade.
Já passava das dez da noite. A aula terminou um pouco mais cedo. Comemorei o retorno antecipado, porque o inverno interiorano não é brincadeira. Atravessei a rodovia escura e de longe vi uma pessoa sentada no ponto. Um senhor e sua mochila.
Cheguei desejando boa noite. O senhor me respondeu, mas de cara me pediu ajuda. Queria uma ambulância, pois tava vomitando e sem conseguir andar. Tentei ligar, sem sucesso. Perguntei de onde ele tava vindo e pra onde tava querendo ir.
Foi um tal de vim de longe procurar minha filha. Justificando que tinha tomado umas a mais. Que na rodoviária só tinha gente querendo enrolar. Tentei ligar novamente e a emergência atendeu. Expliquei a situação e a pessoa informou que já estavam a caminho.
Lembrei de um jogo de búzios que fiz no início do ano em que a sugestão era me atentar ao ver algum idoso no veneno. Oferecer ajuda me fortaleceria. Isso virou um mantra no pensamento. Alertei o senhor que no caminho do ônibus havia um pronto-socorro e lá ele poderia ser atendido. Assim evitaria a incerteza da ambulância e principalmente o frio. Ele achou uma boa ideia, mas falou que precisaria de ajuda pra entrar no ônibus porque as pernas estavam fracas.
Concordei e mesmo assim questionei. Tá, o senhor vai comigo e depois, quando for atendido? Como vai voltar pra casa? Ele disse que a pergunta não fazia sentido. Que se pensasse no dia seguinte ficaria louco. Uma coisa de cada vez, rapaz.
O ônibus surgiu. Avisei ele e dei sinal. Expliquei a situação pro motorista e ele aceitou levar o senhor numa boa. Quando ele levantou do banco percebi que realmente não conseguia andar, entre a fraqueza e o efeito do álcool, e que tava completamente mijado. Com um cheiro tão forte que sinto enquanto relembro e escrevo.
Recordei algumas emergências com meu pai na mesma situação, e isso me ajudou. Essa é a vida. Sem maquiagem e nem disfarce. Nessas horas é só encarar e fazer o que tiver que ser feito. Como o meu pai, as pernas daquele senhor estavam fracas, mas os braços continuavam fortes. Então ofereci apoio, pedi pra ele sentar e segurar firme e combinei com o motorista pra parar no pronto-socorro. Durante o trajeto, continuei com o mantra do jogo de búzios na mente e decidi acompanhar ele no pronto-socorro até o atendimento.
Quando chegamos, lembrei de outra rotina com meu pai. Sobre usar a cadeira de rodas do hospital. Então, enquanto o senhor ficou encostado na parede, subi pra pegar uma cadeira. Quando voltei, ele se sentou e subimos pra fazer a ficha. Ele puxou o RG do bolso da calça todo molhado. Mantive a postura e contei a história pra recepcionista.
O pessoal do pronto-socorro foi sem marra e sem nojo. A atendente me pediu pra levá-lo direto na triagem. Lá ele foi atendido por um enfermeiro. Enquanto o senhor chorava os lamentos da vida e levantava a barra da calça pra mostrar o inchaço e o roxo da má circulação das pernas, o enfermeiro fez um sinal que dali pra frente era com eles. Me despedi. Na saída, passei álcool na mão, mas o cheiro de urina ficou exalando na ponta dos dedos.
Se pá, se fosse no fervo da cidade grande, nada disso teria acontecido. No calejo da correria, a sensibilidade do motorista, dos funcionários do pronto-socorro e provavelmente a minha não seria acionada. Cidade pequena tem várias contradições e várias estranhezas, mas na hora do vamo vê, algumas situações corriqueiras da babylon system ainda ecoam algum sentido solidário por aqui.
Como o ônibus naquele horário passava de uma em uma hora, segui na caminhada, seguro que o senhor não ficaria naquela friaca, mas no outro dia acordei pensando: Será que ele ficou internado? Será que teve alta e conseguiu voltar pra casa? Será que se recuperou pra continuar sua lida com o povo da rua?
Mas calma. Uma coisa de cada vez, rapaz. Na urgência não existe o amanhã. Não foi isso que ele tentou dizer? Minha cara é seguir atento, que o inverno e a universidade vão até final da temporada, e a vida segue cheia de aula extra exposta em cada esquina.
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