GALHO DE ARRUDA***
[...] Quando criança, era comum caminhar pelo bairro e ver placas na casa de algumas famílias indicando que ali “benze criança”, ou mesmo quando não havia placas as pessoas conheciam as benzedeiras e as procuravam por proximidade ou indicação. Normalmente os benzimentos eram gratuitos, pois “o ofício da benzeção constitui um sistema próprio da cura, relativamente autônomo. É um ofício artesanal dentro de um modo de produção capitalista” (OLIVEIRA, 1985, p.69).
A segunda esposa do meu avô, a Dona Josefa, sabia tratar o chamado “bucho virado” de crianças, causador de má disposição no intestino, vômito e falta de apetite. Ela fazia a medição das pernas e da planta dos pés da criança para confirmar se uma perna estava maior que a outra, depois fazia o benzimento no local com uma sucessão de movimentos em cruz e proferindo algumas rezas, e por fim confirmava se o tamanho das pernas voltava ao normal. Eu a vi fazendo essa prática muitas vezes.
Com ela memorizei a função de algumas ervas como o boldo “que é bom pra tratar dores no fígado e estômago”; o hortelã “que é bom pra respiração”; a camomila “que é um ótimo calmante”; a babosa “pra cicatrizar feridas”; a cavalinha “pra tratar infecção urinária”; a quebra-pedra "pra tratar pedra nos rins”, assim como o mastruz, que era oferecido com leite pelo meu pai para curar sintomas de gripe, entre outras.
Dona Josefa me explicou que alguns remédios que compramos aos montes na farmácia, na verdade levam o nome das plantas que têm a mesma propriedade curativa como é o caso da novalgina e da dipirona, usadas para tratar dores de cabeça e febre, e a insulina, utilizada no tratamento da diabetes. Todas essas ervas são ingeridas em forma de chá.
Também aprendi com Dona Josefa alguns sentidos energéticos das plantas, sabedoria que depois reencontrei na prática de terreiro: um galho de arruda na orelha “ajuda a afastar o mal olhado”; folhas de louro além de dar bom gosto na comida, ao colocar um galho atrás da porta de casa “ajuda a atrair prosperidade”; o manjericão além de ser ótimo para cozinhar e fazer chá “pra curar gripe” é bom para fazer banhos energéticos; plantas como espada de São Jorge, comigo-ninguém-pode e samambaia são indicadas para colocar na porta de casa para filtrar as energias negativas.
Muitos alimentos que hoje são catalogados como Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC´s), encontradas no meio do mato e nas beiras de rio e córregos e descartadas da alimentação por falta de conhecimento ou costume, por serem confundidas como pragas ou ervas daninhas (SANTOS, 2023), eram utilizadas por Dona Josefa na alimentação. Recordo-me das saladas que ela preparava com as folhas de serralha, os picadinhos feitos com coração de bananeira e o refogado da planta ora-pro-nóbis. Ela também reutilizava as cascas de banana para fazer como alternativa à batata frita.
Na época eu não dava muita importância para essa sabedoria, mas fui tratado e alimentado muitas vezes com esse repertório e isso me fortaleceu uma memória afetiva que atualmente revisito para auxiliar no cuidado da minha saúde e da saúde das minhas filhas e parentes. Nesse percurso, me considero um aprendiz, já que havia um processo de educação sobre a vida, a partir de uma tradição do saber-fazer (OLIVEIRA, 2018) envolvida no meu contato com Dona Josefa.
O exemplo de Dona Josefa era mais próximo do meu cotidiano, mas como já mencionei, há trinta, quarenta anos, as casas tinham mais espaços e as pessoas cultivavam e tinham uma maior aproximação com as plantas, as ervas, as árvores e a natureza em geral, por isso havia várias “Donas Josefas”, no bairro, com sabedorias semelhantes [...]
*** Esse trecho é parte do livro “Letras, ladeiras e o cuidado de si - Autoetnografia de um escritor periférico”, que será lançado dia 27/11/24, às 19hs, na unidade Sesc-CPF em São Paulo.
Referências:
OLIVEIRA, Débora Priscila de Oliveira. O encontro com a história de vida de uma mulher benzedeira. Dissertação (mestrado). Universidade Federal de São Carlos, Campus Sorocaba-SP, 2018.
OLIVEIRA, Elda Rizzo. O que é benzimento. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
SANTOS, Vanessa Sardinha dos. Plantas alimentícias não convencionais (PANCs). Portal Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/saude/plantas-alimenticias-nao-convencionais-pancs.htm. Acesso em: 15/01/2023.
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