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A MITOLOGIA DO MATO




Quando eu era menino, o bairro em que eu morava era um misto de vida urbana e rural. Foi quando as ruas começaram a ser asfaltadas. Linhas de ônibus surgiram a todo vapor. Casas de alvenaria e suco de pózinho na mesa. Poço de água soterrado e o fim do nosso fogão de lenha. Havia uma certa empolgação com essas mudanças.


Por outro lado, quase ninguém tinha um carro. No máximo, um fusca, uma kombi ou uma brasília velha, que servia pra levar vizinhos pro hospital e quebrar outros galhos. Alguns transitavam com seus cavalos e carroças, que também serviam pra fazer carreto.


Minha casa, como a da maioria, tinha uma pequena horta, galinheiro, pé de goiaba, em outras casas e também na beirinha do rio tinha manga, mamão, pitanga, seriguela, amora, romã, entre outras delícias. Havia somente um prédio solitário rasurando nosso horizonte e, pouco a pouco, o sobradinho passou a ser a forma mais comum de construção. Nessa época, a gente juntava a mulecada e ficava procurando algum campinho de futebol em terreno baldio, lugares que hoje são dominados por condomínios e habitação popular.


Conforme a vida foi ficando mais empacotada e cheia de código de barras, o sonho da geral era voltar pro interior. Digo voltar porque a maioria das famílias vinham de áreas rurais, que foram desertificadas no nordeste, ou do interior de SP e de Minas Gerais, na busca por melhores condições de vida.


Em “Vida Loka parte II”, Mano Brown canta esse sonho: “Às vezes eu acho que todo preto como eu/Só quer um terreno no mato só seu/Sem luxo, descalço, nadar num riacho/Sem fome, pegando as fruta no cacho…”. 


Até então, estar no “mato” significava ter uma vida de tranquilidade. 


Recentemente me mudei pra Salto de Pirapora, numa distância de 122 km da capital, na terra onde tá localizado o Quilombo Cafundó, próxima da rota ecológica de São Miguel Arcanjo, Capão Bonito e Ribeirão Grande. Só que… Estamos em setembro de 2024, final do inverno, início da primavera. São duas e vinte sete da tarde. Minha vista arde e a boca seca a cada 10 minutos. 


Sair na rua nesse horário é dor de cabeça na certa. O céu de agosto, o mais bonito do ano, como diz o poeta Fuzzil, ficou opaco durante todo o mês passado. São dezenas de dias sem uma gota de chuva sequer. O sol queima, mas sem raio, sem brilho, com a pilha fraca. 


Quando anoitecer, o vento vai surgir e de manhã só me resta varrer a fuligem do quintal, que parece vestígio de fogueira. Sipá, essa é a fogueira do mundo. Por enquanto, temos água na torneira, que salva nossas plantas dessa secura. Quando a folha de boldo fica um dia sem água ela começa a se abraçar, num pedido de socorro de fora pra dentro. 


Na rua ouvi um cara dizer que “quando tudo era mato, sempre caia uma chuvinha nos tempos de inverno”. O “mato”, que antes era uma metáfora usada pra expressar quantidade, virou um elemento mitológico, pra falar de um tempo distante, de uma história de origem, anterior à vida urbana. Mas o conhecido lugar do “mato”, não é mais o mesmo. Morar no interior já não significa apenas sinal de tranquilidade. 


Nos tempos de menino, também me lembro de pegar a estrada pra visitar os parentes ou jogar futebol. Era o momento de contemplar as plantações de cada cidade. Limeira, era a terra da laranja, Jundiaí era terra da uva, Holambra terra das flores e assim por diante.


De uns anos pra cá o que mais vejo na estrada são as plantações de cana e as chaminés das usinas. Onde eu moro predomina o deserto verde de eucaliptos, e há várias dessas torres exalando um tipo de fumaça que até parece inofensiva, mas que não cessam de soltar o maldito gás poluente pro céu.


Daqui, sigo criando escamas de asfalto, tossindo a tabela periódica, nadando num rio ensaboado de garrafas pet, mas acreditando na força criativa da “mitologia do mato” pra virar esse jogo, porque o sentimento de incapacidade tá reinando forte e trazendo ansiedade, e isso já faz uma cota.  


Tomara que chova, precisa chover.


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